terça-feira, 23 de agosto de 2016

Maria Cláudia Saccomani

Em Cada coisa a seu tempo tem seu tempo o poeta Fernando Pessoa escreve:
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
Esses versos nos remetem ao posicionamento romantizado tanto na arte como na educação em relação à imaginação infantil. Muitos autores colocam nas crianças capacidades inatas ligadas, por exemplo, à criatividade. Rechaça-se a escola, pois nela estariam os exterminadores de um processo lúdico grandioso que os pequenos supostamente teriam consigo. Discutindo estas questões encontra-se a pesquisadora Maria Cláudia Saccomani que possui graduação em pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É mestre em Educação Escolar pela mesma Universidade. É integrante do grupo de pesquisa Estudos Marxistas em Educação. Atualmente desenvolve como doutoranda sob a orientação do Prof. Dr. Newton Duarte suas pesquisas sobre o desenvolvimento da língua falada e escrita na educação infantil na perspectiva da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica.
Sua dissertação de mestrado destinou-se ao estudo da criatividade na arte e na educação escolar à luz de Georg Lukács e Lev Vigotski e é sobre ela que a pesquisadora nos fala nesta entrevista.


Confiram:

                                                                Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.

Tecendo em Reverso - Quais foram as demandas que a levaram a pesquisar: “A CRIATIVIDADE NA ARTE E NA EDUCAÇÃO ESCOLAR: uma contribuição à pedagogia histórico-crítica à luz de Georg Lukács e Lev Vigotski”?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Constatamos uma falta de clareza no âmbito educacional acerca do que seja criatividade e como essa capacidade humana se desenvolve. Identificamos uma generalizada aceitação da criatividade como um dom ou potencial individual inato que se desenvolve por meio de relações espontâneas com o ambiente cultural, não necessitando da transmissão sistemática do conhecimento e até mesmo a ela se opondo. Para as pedagogias hegemônicas, ensino e criatividade são compreendidos como polos que se excluem, sem qualquer movimento dialético.  Nesse sentido,  defendemos a necessária superação de ideias que apresentam o ato criativo como uma expressão livre e natural do psiquismo humano. Nosso objetivo reside em mostrar que a criatividade não é uma propriedade psíquica alheia à realidade concreta, mas sim um comportamento complexo culturalmente formado, dependente do trabalho pedagógico orientado pelo que há de mais desenvolvido na cultura. Assim, a educação escolar promove a criatividade quando cumpre sua função de socializar, de modo sistematizado e planejado, o legado cultural em suas máximas expressões, como postula a pedagogia histórico-crítica.

Tecendo em Reverso – Por conta de concepções equivocadas acerca da educação infantil, muitos professores tratam de arte na sala de aula, como para preencher um espaço com desenhos e atividades empobrecedoras. De que forma a arte enviesada em seu contexto histórico e crítico pode promover a emancipação humana?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – As diferentes concepções de educação infantil e de desenvolvimento humano presentes no campo educacional corroboram em práticas pedagógicas que pouco contribuem para a organização do trabalho pedagógico nesse segmento de ensino. Por um lado, há ideários centrados numa perspectiva antiescolar, que entendem a criança como protagonista do trabalho pedagógico e a criatividade como fruto de interações espontâneas com a cultura, que seria prejudicada pelo trabalho diretivo e intencional do professor. Por outro, há um desconhecimento sobre o que é arte e qual o seu papel na formação humana, o que por sua vez, resulta em práticas pedagógicas estruturadas a partir de atividades mecânicas e monótonas, que não estão em consonância com o período de desenvolvimento em que as crianças se encontram, nem tampouco são  promotoras do desenvolvimento da sensibilidade estética.
            Nesse sentido, cabe questionar qual o critério utilizado, pelo professor, para selecionar esse desenho (atividade) e não outro(a)? Quais objetivos e conteúdos estão presentes neste planejamento pedagógico? Defendemos, na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, a socialização da cultura acumulada historicamente em suas máximas expressões, desde a mais tenra idade. Assim sendo, a organização do ensino na educação infantil deve ter como norte a produção das máximas potencialidades humanas  objetivadas na cultura em cada aluno. Como patrimônio cultural,temos  ao lado da ciência e filosofia, as objetivações artísticas, que são produtos do trabalho dos seres humanos e, portanto, não podem ser propriedade apenas da classe dominante.
            A educação escolar deve colocar os alunos em contato com aquilo que não tem acesso em sua vida cotidiana, ampliando seus horizontes para além daquilo que já está dado. Entendemos que a escola deve promover a consciência estética, garantindo o  contato das crianças com as expressões artísticas desde os primeiros anos de vida. Esse contato, quanto antes for oportunizado, pode ser determinante da futura relação do indivíduo com o patrimônio cultural artístico.
            O professor, nesse sentido, precisa ter uma clara compreensão do que é arte, sua necessidade, papel e significado na formação dos seres humanos. Questão complexa para ser explorada de forma sintética. Grosso modo, é preciso compreender que os sentidos humanos pressupõem uma base biológica, mas não se limitam a ela, ou seja, pela apropriação da cultura, deixam de ser tão somente biológicos e passam a ser essencialmente sociais. Como bem explicou Marx, a formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história humana até o presente momento. Assim sendo, desenvolvem-se no decorrer do processo histórico-social. Portanto, os sentidos, as sensações e a percepção precisam ser formadas e educadas em todas as crianças. Lutar contra a alienação, tendo como direção a emancipação humana, significa possibilitar que as conquistas da humanidade se objetivem na particularidade da vida dos sujeitos. Sabemos que a escola, por si só, não transforma a realidade, mas forma e transforma o psiquismo dos sujeitos que, em sua ações concretas, almejam fazê-lo.
           

Tecendo em Reverso – A imaginação infantil é altamente apreciada pelos pais, e até mesmo por professores. Coloca-se a escola como um local onde a criança terá sua criatividade decepada pelo modo de ensino. Como transformar tais concepções para o avanço de uma atuação mais sólida dos professores que garantirá o aprendizado dos clássicos pelos alunos?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – É bastante disseminada a ideia de que as crianças têm uma rica imaginação e a escola, ao transmitir conhecimentos, acaba por atrofiar essa capacidade. Porém, baseando-se em Vigotski, a professora Lígia Márcia Martins em seu livro “O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar – contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica” mostra-nos que esse é um equívoco conceitual, pois se o desenvolvimento da imaginação fosse mais fértil na infância que na idade adulta, este seria um curso contrário à concepção de desenvolvimento na medida em que a imaginação seria uma função psíquica com processo “involutivo”, isto é, iniciaria na infância em sua máxima plenitude e caminharia em direção ao seu fim e, portanto, não teria o efeito de desenvolver-se. Em contrapartida, evidenciamos que a imaginação é uma função altamente complexa, dependente do pensamento abstrato.
            Sem o ensino sistematizado e orientado por conteúdos não cotidianos,  conteúdos clássicos, não há abstração e, na ausência desse pensamento, não há imaginação e criatividade. Somente com liberdade interna de pensamento, o indivíduo pode romper com aquilo que memorizou, transformando a imagem do que existe em nome de algo que possa vir a ser. Para criar algo novo, faz-se necessário a apropriação  daquilo que já existe!
            Com efeito, confunde-se rica imaginação infantil com as explicações fantasiosas que a criança constrói sobre a realidade baseadas nos limites do desenvolvimento de sua consciência e de seu pensamento. As crianças, em suas explicações, desconsideram (porque ainda não conhecem!) as leis objetivas que regem a realidade concreta. Essas explicações infantis, por mais encantadoras que pareçam aos olhos dos adultos, precisam ser superadas em direção ao desenvolvimento do pensamento conceitual.
            Ademais, é comum adjetivar a brincadeira de papéis (jogo protagonizado ou faz de conta) como máxima expressão da imaginação infantil, como um momento em que a criança se afasta da realidade para vivenciar o “mundo da imaginação”.  Consideramos que essa ideia é um desconhecimento sobre o desenvolvimento psíquico em geral e, em especial, sobre o papel da brincadeira no desenvolvimento infantil. A psicologia histórico-cultural nos mostra que a brincadeira é uma atividade em que a criança amplia seu conhecimento sobre o mundo, e não uma atividade em que se distancia dele. A partir de Vigotski, podemos dizer que não é a imaginação que impulsiona os jogos simbólicos, mas é a atividade da brincadeira que exige processos imaginativos, visto que conclama, por sua estrutura, papéis e situações imaginárias, que por sua vez, partem da vivência concreta da criança com conteúdos determinados pela percepção que ela tem do mundo objetivo e não de modo alheio à realidade concreta.
            Entendemos que a brincadeira é, de fato, uma atividade essencial ao desenvolvimento infantil. Na educação escolar, quando devidamente orientada, representa um grande salto qualitativo nos conhecimentos que a criança tem sobre o mundo. Entretanto, não se pode perder de vista que este é o início do desenvolvimento da imaginação e não sua máxima expressão.  É preciso, pois, superar os ideários pedagógicos que compreendem a imaginação e a criatividade em suas manifestações aparentes para que os professores, por meio de suas ações concretas, possam lidar com o fenômeno da criatividade avançando na direção da captação de sua essência.

Tecendo em Reverso – No seu trabalho lemos: “O psiquismo humano é produto social e é por isso que a pedagogia histórico-crítica defende a educação escolar como espaço privilegiado para o desenvolvimento humano, para a produção da humanidade em cada aluno”. Como você avalia hoje a escola em face ao modo de produção capitalista?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Em ligação com a pergunta anterior, é preciso destacar que, dadas as condições de vida e educação na sociedade contemporânea, grande parte das pessoas não alcança patamar superior de desenvolvimento psíquico, ou seja, não chega a desenvolver o pensamento por conceitos e, consequentemente, a imaginação não se desenvolverá em plenitude. Assim sendo, em face da alineação da sociedade capitalista, nem todas as pessoas são imaginativas. A falta de imaginação, portanto, não pode ser explicada à luz da subjetividade individual, mas sim como uma expressão psicológica da alienação, visto que o sujeito é desprovido das condições de vida e educação requeridas ao seu desenvolvimento psíquico.
            A criatividade não resulta de mecanismos inatos e hereditários, mas desenvolve-se por meio da apropriação da cultura. Trata-se de um desenvolvimento histórico-cultural e, portanto, depende da produção na subjetividade de cada aluno daquilo que já foi produzido pela humanidade no decorrer da história. É preciso, pois, que a escola cumpra sua função precípua: a transmissão dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos em sua máxima expressão.

Tecendo em Reverso – No processo das traduções as leituras de Vigotski no Brasil sempre foram interpretadas ao sabor das circunstâncias, ou seja, nem sempre a teoria original foi respeitada em seu método. Ao seu ver qual a grande contribuição do psicólogo russo para a educação brasileira?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Zoia Prestes, em sua tese de doutorado, discute sobre as obras de Vigotski traduzidas para a língua portuguesa e aponta que as traduções da obra vigotskiana demonstram inúmeros equívocos (propositais ou não) que modificam essencialmente a compreensão de conceitos da teoria e destorcem as ideias do psicólogo russo ao sabor das circunstâncias, como você bem colocou na questão. Esse problema também foi apontado pelos estudos do Professor Newton Duarte, quando  denunciou os desvios das ideias vigotskianas contidas em trabalhos que se propuseram a divulgar a obra do autor.
            Ao meu ver, a grande contribuição de Vigotski reside na tese da natureza social do psiquismo humano. Quando o psicólogo russo aponta o papel dos signos na transformação das funções psíquicas elementares na direção das funções psíquicas superiores, evidencia que o desenvolvimento é um processo mediado e subjugado ao ensino. Essa teoria psicológica ao evidenciar que o desenvolvimento não é natural e espontâneo, mas dependente da apropriação da cultura, sinaliza a valorização do ato de ensinar e, consequentemente, a valorização do trabalho realizado pelo professor como aquele que, diferente do que as pedagogias hegemônicas afirmam, ensina!!!

Dica de Leitura:



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